Vejo-o há mais de trinta anos.
Não é recíproco.
Nem deve notar minha existência.
Diz a lenda, era funcionário de uma estatal e há muitos anos é aposentado.
Se tem família, esposa ou filhos ignoro.
Mora num predinho de dois andares e sai todos os dias com um livro embaixo do braço.
Sua caminhada sempre foi curta.
A parada era uma padaria, hoje fechada, localizada a menos de cinqüenta metros de sua casa.
Sentava-se numa das mesinhas, pedia um cerveja e abria o livro.
Livros grossos. Uma vez estava com um Dostoiesvky.
Que inveja!
Nunca o vi lendo um jornal.
Nunca incomodou ninguém.
Nunca o vi conversando com qualquer pessoa, exceto ao levantar o dedo e pedir mais uma cerveja ou um sanduíche ou perguntar quanto era a conta, antes de assinar a dívida no caixa.
Remanescente dos tempos finais do fiado e da caderneta deve ser um dos últimos a ter esse tipo de crédito no bairro.
Dá a impressão que a única mudança capital nestes tempos foi o fechamento da padaria.
Mudou de calçada.
Foi alojar-se num barzinho de esquina.
Primeiro sentava-se numa mesinha do fundo, agora ocupa a mesa mais próxima do balcão.
Alguns dias paro para observá-lo.
Agora também tenho todo o tempo do mundo para fazer qualquer coisa.
Ele parece não desviar os olhos do livro e nem parar a leitura sequer quando beberica o copo, morde o sanduíche ou coloca o garfo na boca.
Sempre lá.
Pela manhã, à tarde, à noitinha.
Sempre lendo.
Diria que ele altera significativamente a estatística da média de livros "per capita" lidos no braziu.
Quanta sabedoria deve ter guardado dentro de si?
Com quem a divide?
Quem passa rápido, quase nada diferente notará nele.
Já era totalmente careca, gordo, passos lentos.
Pelo meu espelho, ele envelheceu bastante.
Já deve ter mais de oitenta anos.
Talvez poucos percebam sua ausência no dia em que se for.
Mereceria uma estátua, perpetuando sua figura lendo na mesa de um bar.
Semelhante a que João Rubinato (Adoniran) ganhou no Bixiga e Carlos Drumond de Andrade em Copacabana.
Se não compôs como Adoniran, nem escreveu como Drumond, deve ser uma das pessoas que mais leram.
Pelo menos dentre as que conheci.
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02 setembro 2008
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2 comentários:
Uma pena que existam cada vez menos pessoas como ele. No mundo. Hoje apenas uma minoria pode dizer que se deu o luxo de realmente saborear um bom livro. Com calma, e não como se sua vida dependesse de terminá-lo. Lendo seu texto, pensando neste senhor, não tive como não lembrar das inúmeras propagandas de cursos de leitura dinâmica e memorização que já vi - e não pretendo fazer. Leitura tem de ser por prazer, e não para acumular uma quantidade de livros lidos só por acumular. Certamente este senhor sempre leu por prazer. E leu muito.
eu me lembrei dos tempos de adolescência em que eu, no meio da algazarra dos meus irmãos mais novos, ignorava a todos e ficava no mundo dos livros (ou da lua?)
cresci. não abandonei os livros, mas aprendi que certas histórias a gente só lê vivendo.
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