Na Vila ouvia-se ao longe a cantoria da casa do Sr. Chico
Doido da Ideia.
“Canto e gosto de cantar. Quero levar a vida sempre a
cantar”.
Bateu à porta um estranho.
Quem é? Gritou Chico, prosseguindo a cantoria: “Canto e gosto
de cantar. Quero levar a vida sempre a cantar”.
Novo vizinho.
Ora, ora... Vizinho novo e já reclamando. Canto porque gosto
de cantar.
Tenho muito trabalho e careço de silêncio. Não se cansa de
tanta cantoria? Além de incomodar a vizinhança com sua felicidade, não pensa em
nada além de cantar?
“Canto e gosto de cantar. Quero levar a vida sempre a
cantar”.
Não teme o futuro?
Pouco, mas de mais a mais, não espalhe o fato, chegaram-me
notícias que receberei parte da herança de um velho parente, que desconhecia
até a existência. “Canto e gosto de cantar. Quero levar a vida sempre a
cantar”.
Isto não o envergonha? O velho parente deve ter labutado às
extremas para enriquecer e irá desperdiçar as economias em coisas banais. Não
conhece o ditado “A água traz, a água leva”?
Vizinho, não me preocupa a origem do dinheiro que me cai às
mãos. Simplesmente, gasto. O próprio El Rey disse que o povo precisa gastar
para movimentar a economia. E de que adianta trabalhar, entesourar-me e não
desfrutar dos prazeres que a riqueza pode dar?
Necessário prevenir-se para o dia de amanhã. Formar-se uma
previdência para os anos de idade avançada. São lições que aprendi com meus
avós, que vieram de outras Vilas. Veja a situação de quase miséria de parte de
nosso povo. Mal dá para alimentação e remédios a verba ínfima que recebem de El
Rey.
Nesta região da Vila sempre há uma alma boa que socorre na
hora da necessidade. Se ficar a pensar
em problemas futuros, não gozarei dos prazeres presentes. É do DNA de minha
família vida breve. El Rey não devolve à família a verba deixada a seus
cuidados, se o súdito parte antes do combinado. Talvez divida-a com os nobres
do palácio.
Tem dose de razão seus argumentos, mas sei de súditos que
não deixam todas as economias aos cuidados de El Rey.
Como assim? El Rey sabe de tudo. As paredes desta Vila têm
ouvidos sensíveis. Dizem que El Rey coloca Vassalos com leões a fiscalizar
nossas riquezas para exigir seus tributos.
Há notícias trazidas pelos nômades sobre Vilas nas montanhas
que escondem riquezas, sem noticiar El Rey.
Isso é interessante. Se existissem tais lugares, seria um
Paraíso. Conhece alguma?
Locais secretos. Ninguém sabe ao certo.
E o senhor.... Como é seu nome?
Aparecido Formis. Pode chamar-me de Cidão.
Cidão, você guarda seus tesouros nessas Vilas?
Não posso revelar. É segredo.
Ah! Se eu pudesse fazer isso com parte da herança, seria
maravilhoso.
Faria mesmo isso?
Claro! Mas, ocorre-me uma dúvida. De que vivem os Senhores
dessas Vilas?
Ora! De parte da riqueza que escondem.
Então é a mesma coisa. Cobram impostos... Como El Rey.
Dizem haver diferenças. Eles cobram apenas uma taxa sobre o
tesouro que deixa aos cuidados deles. Você diz o valor.
Não conferem?
Os nômades dizem que não,
Quem me garante que quando eu pedir de volta meu tesouro,
devolverão o valor correto?
É uma questão de confiança.
Pensarei sobre o assunto. Só uma curiosidade. Mora em qual
casa?
De verdade, não moro aqui. Moro no Castelo.
Que vem fazer nesta região tão pobre da Vila?
Sou Exator de El Rey. Estou de passagem a verificar se não
há tesouros secretos escondidos nesta região.
Os nômades comentaram sobre esta região? Devem estar doidos.
Aqui só há pobreza.
Estava apenas de passagem, mas o senhor cantava tão feliz
que me chamou a atenção.
Não conhece o ditado: “Quem canta seus males espanta?” Nesta
humilde casa não achará tesouro algum.
Por enquanto... Voltarei breve. Noticie-me sobre a herança.
Nem tenho certeza se receberei.
Noticie-me, por favor... E o valor correto.
E se não o fizer.
Mandarei os Vassalos dos Leões virem cobrar. Tenha um bom
dia.
O senhor o estragou.
Cante, Sr. Chico... Como era mesmo o cantiga?
Cidão, o Exator,
partiu sem mais.
Com ar de arrependimento, Chico cantarolou baixinho: “Fica o
dito por não dito... Em boca fechada não entra mosquito...”
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(*) Alegoria/Fantasia “Homos sapiens” da fábula “A Formiga (Formicidae)
e a Cigarra (Cicadoidea)”
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