20 novembro 2019

GRITO NEGRO



                                                           Liberdade...Liberdade.../ Abre as asas sobre nós
                                                                  Liberdade... Liberdade.../ Ouçam um dia nossa voz
(Incidentais – Ala de Compositores - Imp. Leopoldinense 1989).

Valei-me Ogum guerreiro,
Iluminai esta escuridão
No porão de Navio Negreiro
Partiram pai, mãe, irmão

Pele arde, a alma pena presas no pelourinho do porto negreiro
Sol de verão à pino, espera comprador que pague seu valor
Examina a boca, manda virar o corpo confere se está inteiro 
Queria levar, mas é magrinho preciso de um bom reprodutor

Macho dessa raça é viril e se levar dois cobro-lhe apenas mil
Moedas na mão, pregoeiro abre sorriso, anuncia os próximos lotes:
Preciosas prendas, perfeitas pra emprenhar, vejam que quadril
Predadores à espreita prontos pra provar seus dotes

Valei-me Iansã dos ventos
Levai ao céu nossas vozes
Soprai pra longe os sofrimentos
Afastai de nós os algozes

Triste a procura inútil pelo carinho de mãos amigas
Vida trancada em senzala, grossa corrente no pé
Madrugadas sofridas entoando estranhas cantigas
Lembrança dos antepassados para não perderem a fé

As noites são longas, escravos amontoados no chão
Cantoria se repete, persistente, cansativo estribilho
Serve para aplacar o banzo reforçar o ódio no coração
Esperança que resta, deixa como herança ao filho

Valei-me Oxóssi Caçador
Moleque seja seu protegido
Aquecei-o com seu calor
Nas lutas não saia ferido  

Apanhar desde pequeno pra aprender a prender o choro
Trabalhar sem preguiça, o chibata vai lanhar o couro 
Pode rasgar a pele, pele negra não serve para coser
Que vida é essa, apenas promessa o amor e prazer

Dias quentes e longos, resistem aos trancos e barrancos
Malungos abatidos de banzo, mandingas pra não perder a coragem
Na alma o ódio crescente, carne ansiando vingança aos brancos
Uma forma de luta, dengos e cafunés em inexorável mestiçagem

Valei-me grande Senhora
Olhai por seus filhos, Iemanjá,
Levai o sofrimento embora
Afastai dos males, Saravá!

Meninas pequenas impúberes sem defesa eram abusadas
Pelo dono da terra, amigos do dono, capitães do mato, o feitor
Rude rotina diária, a vida não para, ouve-se pelas madrugadas   
Gritos das dores do parto, nas mãos da mucama a mistura de cor

Ao mundo os primeiros negrinhos sararás e branquinhas pixaim
Corria nas veias sangue de Luanda e Congo junto ao português
Sem romantismo na história, era vitória dos povos de Benin,
Dos Bantus de Angola, Nagôs, de Benguela, Daomés e Malês

Valei-me a justiça de Xangô
Digam os Ofós... despertem Ossaim
Muita Saúde ao povo Nagô
Todos juntos na lavagem do Bomfim

Tempo tira a lisura do rosto, cerca o olhar de rugas
Tambores rompem horizontes espalhando aos ares
Trilhas secretas dos cafundó, onde há refúgio nas fugas
Os caminhos de Kalunga, Marolim, Urubu e Palmares

A liberdade é conquista de poucos nas Cartas de Alforria
Princesa assina um documento contendo falsa abolição
Permanecem invisíveis correntes, nas lutas de cada dia
Negros, Pardos, Mulatos... parece não ter fim a escravidão

Valei-me entre outros tantos
Ganga Zumba... Zumbi...
Meia Légua....
Dragão do Mar de Aracati...
À benção aos que deram a vida nas lutas da raça

Valei-me almas quase santas
Menininha do Gantois...
Carolina e Clementina de Jesus...
Dandara... Lia de Itamaracá...
À benção... mulheres negras e seus gritos de alerta

Valei-me, mentores e entidades
Tia Ciata, Maria Firmina, Solano Trindade...
Um salve a Castro Alves
À benção...Poetas cheios de luz
Seus versos revelam cruéis verdades...
Denunciam o laço que aperta a mordaça
Abafando até hoje os gritos dos porões

Joga capoeira, dança jongo, com abadá da escola
Libertos e forros, silentes de medo nas vielas do morro
Passado de luta insiste ecoar no sangue quilombola
Engana a realidade da falsa liberdade, pedem socorro

Há muvuca, cabeça de negro a prêmio, pretexto não falta
De preconceito em preconceito, vaga distante a paz
Curam antigas feridas, surge uma nova e lhe assalta
Ameniza as mais doloridas em preces aos orixás

Valei-me Oxalá! Poderoso criador
Dai-me seus conselhos Nanã
Escutai nosso grito de clamor
Afastai mau olhado um balangandã

Valei-me todos sincréticos santos
Enviem mensagem... um sinal
A liberdade dos Nagôs e Bantos
Chegue antes do Juízo Final
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https://www.recantodasletras.com.br/poesias/6798998

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